O final de um novo início (Último Capítulo)

Matheus B. S. Brandão
7 min readAug 16, 2020

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Estava anoitecendo. Eu estava sozinho no meu quarto, estudando com a porta aberta. Apesar do frio, a ideia de cruzar o olhar com uma cachoeira me parecia palatável. Depois de um momento, vejo que as luzes da sala se acenderam, ao que parecia, os anfitriões haviam chegado. Eu não havia como ou para onde ir naquela noite, só sabia que precisava jantar dessa vez.

Apesar de tudo, ainda entrei de maneira tímida, vi o cardápio e solicitei a mesmíssima coisa da noite anterior. Só que dessa vez, existia a certeza que Luciana não esqueceria. Eis que se aproxima de mim uma personagem não descrita anteriormente, a querida Suzanna Schneider, filha do primeiro casamento de Lucas. Ela era uma menina de 11 anos, cabelo castanho e olhos claros, era uma verdadeira princesinha, bastante sociável e inteligente, me concedeu a honra de jogar UNO com ela.

Enquanto esperava minha pizza, eu me diverti ao jogar com ela. Mas decidi que não a deixaria ganhar de nenhuma forma, não naquela noite. Entre uma carta e outra, eu fui conhecendo a rotina de nossa amiguinha e vice-versa. Ao que parece, ela podia se dar o luxo de ter a infância que todas as crianças merecem ter, de poderem trilhar seus caminhos, explorarem este mundo e não precisarem suprimir seus instintos devido às brutalidades do mundo adulto.

A pizza havia chegado, era de calabresa, tamanho médio, eu a devorei. Após isso, voltei a jogar enquanto conversava com Lucas e Luciana. Até que Suzanna me perguntou por que minha namorada havíamos terminado comigo. Eu a respondi que a vida é complexa e que ela havia os motivos dela e eu havia os meus. Ela olhou para mim, e como a se fosse uma irmã mais nova que jamais tive, me respondeu:

— Você é um garoto muito legal, ela deve ser doida, com certeza outra garota vai gostar de você.

O universo das crianças é tão simples, elas observam, questionam, perguntam e depois dão seu veredito. Entretanto, eu não estava esperando aquele golpe, palavras tão dóceis e puras, ainda mais de alguém que levava uma surra no UNO. Já estava ficando tarde, era hora de todos irem dormir. Lucas me deu uma garrafa de água para ter em meu quarto. Sem qualquer tipo de explicação, não o via mais como o administrador de lá, mas como quase um parente. Era engraçado, pois, conheci em tão pouco tempo inúmeras histórias sobre cada um deles, e o mais interessante era perceber como elas se entrelaçavam.

As luzes se apagaram, mas não quis entrar no chalé, fazia 12Cº e o céu estava estrelado, tão limpo e perfeito como se tivesse sido pintado. Confesso que eu fiquei mais alguns minutos, só para admirar e ver alguma estrela cadente. Ao mesmo tempo que aquele céu me era algo novo, também sentia uma sensação nostálgica, como se nossa relação já fosse íntima. Naquela noite, eu dormi sereno embaixo da cerejeira que estava pintada na parede acima da cama.

O dia seguinte, um domingo, era o meu último naquele lugar. Assim como também seria o deles, já que não mais administrariam aquele hotel. Basicamente, eu tomei nada menos que o melhor café da minha vida, e fui brincar de UNO com Suzanna. Dessa vez, depois de tantas derrotas, era hora dela vencer. Eu manipulei o jogo para eu perder, e quando ela venceu, foi uma explosão de alegria, ela pulava e cantava, como se tivesse ganhado na Mega-Sena. Talvez ela precisasse perder para dar valor quando vencesse, até porque aquela única vitória a havia deixado mais feliz do que se eu a deixasse ganhar inúmeras vezes, de igual modo, perder me deixou mais feliz do que qualquer todas as vitórias que tive.

Eu ajudei os Schneiders a arrumarem suas bagagens, os demais hóspedes já haviam partido. Até que quando tudo estava pronto, eu pedi um último favor, que eles tirassem algumas fotos minhas e me enviassem depois. Eu até havia conseguido tirar algumas da paisagem antes do meu celular escangalhar. Entretanto, não havia nenhuma foto minha. Eles de bom grado tiraram.

Em seguida, eles me ofereceram carona até uma parte da cidade, e como Lucas sempre me disse, depois estaria por minha conta. Luciana me informou que posteriormente enviaria as fotos. Antes de partir, me despedi deles, para cada e de cada pessoa, uma frase. Uma delas foi a de Lucas, que me deu um abraço e disse:

— Você não é um hóspede, você se tornou um amigo e parte da família.

Aquela aventura, com um baita prejuízo, havia indubitavelmente valido a pena.

Pois bem, segui meu caminho para o Rio de Janeiro, passando por vários ônibus. Peguei o primeiro ônibus. Como eu não havia celular, me guiava por placas e conversava em paradas com quem puxasse assunto comigo, vivi como uma pessoa de outro século, e de certa forma, posso dizer que foi uma das melhores experiências que já tive. Quando cheguei ao Rio, não havia grana para tomar táxi. Peguei o VLT, depois o metrô e depois uma van.

Quando cheguei em casa, eram quase 20 horas. Eu disse para meus pais que depois daquela experiência eu estava apto para sobreviver em qualquer lugar do mundo e sob quaisquer circunstâncias. Em seguida, tomei um banho, troquei de roupa, e fui ver como estavam minhas redes sociais.

“Matheus, tudo bem? Gostaríamos de informar que Tom faleceu”.

Escrito por Cristina (namorada de Marcos).

Naquele momento, a auréola da minha cabeça desapareceu, eu pedi para que minha mãe lesse a mensagem para confirmar se eu havia lido aquilo corretamente. De fato, Tom havia falecido, fui falar com aqueles que me detestavam e os que não detestavam tanto, inclusive Marcos. Ao que parece, Tom havia falecido no sábado e vinha se sentido mal há alguns dias, sua amiga Rebeca iria visitá-lo para lhe fazer companhia, entretanto, ele partiu pela tarde daquele mesmo dia, sendo enterrado na manhã de domingo.

Tom, era quatro anos mais velho que eu na época, negro, obeso, alto, com um coração gigante, um rapaz que veio de baixo, nascido nos quintos dos infernos, havia conseguido se tornar um aluno de Ciências Políticas na prestigiada UFF. Inteligente, gentil, solícito, seu conhecimento não o impedia de ser a expressão viva da periferia, a cada novo conhecimento obtido, ele o usava para compreender a realidade e assim modificar o meio em que vivia, seu jeito de professor já lhe era próprio antes mesmo de obter a licenciatura que nunca pode completar.

Liguei para Esmeralda, para saber como ela estava. Ela estava em cacos. Eu a questionei por que ela não havia ligado para meu telefone fixo, assim poderia ter avisado minha mãe e eu não ser pego com tamanha surpresa. Ela em prantos, só respondeu que não lembrava e me resumiu a falar de seus sentimentos, contando-me que na manhã do enterro foi acordada pelo despertador com a música: “Gostava tanto de você, de Tim Maia”, canção que até hoje me faz lembrar este momento. Continuei a conversar com ela, ao mesmo tempo em que a consolei, discutimos, mas a conversa se findou com a frase bilateral: “Você é especial, jamais abaixe a cabeça para alguém”.

Não havia raiva entre mim e Esmeralda. Mas Tom e eu havíamos terminado nossa jornada por esta terra brigados. Contudo, não havia mais sentido ter guerra ou ressentimento, tudo se tornou insignificante. No primeiro dia não chorei, na ocasião disse a mim mesmo que era o tipo de pessoa que dava importância com o que fazemos em vida e a morte não muda isso.

No dia seguinte, que também era a data da primeira prova em que eu precisava de um sete para passar, eu chorei e escrevi um poema, não era belo ou depressivo, era sincero. Ao retornar da prova, decidi que escreveria mais alguns e depois queimaria. No terceiro dia, fiz a temível prova de economia.

Por conseguinte, passei em ambas as provas com sete. Depois dessa guerra, escrevi uma carta endereçada à mãe de Esmeralda, que era muito minha amiga, para que ela entregasse a sua filha. Minha ex sentia uma culpa infindável sobre o ocorrido, então pensei em retirar aquele peso de seus ombros, não fazia sentido ela se odiar por ter sido humana. Entretanto, eu não sentia isso. Meu sentimento era pior, era de algo inacabado, meu amigo se tornou quase um inimigo, e agora estava morto. Nada fazia sentido.

Por fim, levei a churrasqueira e comecei o funeral dos poemas. Tudo ocorria como o esperado neste ritual, até que chegou o momento de incinerar a obra que foi escrito em homenagem a Tom. Eu coloquei o acendedor, mas por alguma razão ela não queimava. Joguei mais, e depois de muitos minutos aquela folha começou a pegar fogo.

Após algum tempo as brasas não queimaram mais, restando um pedaço do poema, no qual estava escrito a palavra: “final”. Inexplicavelmente, esse fragmento foi o único que sobreviveu ao fogo, e eu nem me recordava de havê-lo escrito. Peguei aquele pedaço, como se aquilo fosse uma mensagem.

Naquela mesma semana, recebi um e-mail. Nele havia uma proposta de trabalho na segunda maior empresa do mundo, a qual eu não havia enviado meu currículo anteriormente. De fato, não há como saber sobre o que era o final indicado pelas brasas. Mas, depois daquele dia, as guerras cessaram. Uma das maiores dores que tive foi não poder prestar condolências à família de Tom durante o enterro. Sentia como se os tivesse abandonado no momento mais duro, mesmo que não houvesse o que ser feito.

Recordo que Tom foi a primeira pessoa que conheci na faculdade, ele me propiciou inúmeras experiências e desventuras, pavimentou meu caminho, mesmo sendo por vezes em estradas tortuosas. Graças a ele eu conheci uma pessoa que durante um tempo me fez ser o homem mais feliz deste mundo. As palavras podem ser eternas, de tal modo que nem mesmo as brasas incandescentes podem extingui-las. Jamais saberei onde Tom está e tampouco se um dia o verei, entretanto, se aquele pequeno pedaço intacto de papel no meio do fogo foi sua resposta, estou certo de que um dia nos veremos novamente, para o final de um novo início.

O presente romance é baseado em fatos reais.

Todos os personagens e lugares tiveram seus nomes alterados.

Autor: Matheus B. S. Brandão

Revisor Ortográfico: Wesley Alves

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Matheus B. S. Brandão

Master in International Relations. Amateur writer in his spare time. Enthusiast of philosophy, art and nature.