Matheus B. S. Brandão
4 min readNov 15, 2020

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O homem do carro cinza e as 4 palavras.

Não era o dia mais agradável, nem o mais florido ou mais alegre. Em suma, era mais um típico sábado, só que um daqueles em que eu havia acordado cedo. De fato, há pedidos que nos fazem sorrindo, mas que executamos chorando. Naquela ocasião, não havia sorriso, só o gosto amargo e ao mesmo tempo meio agridoce.

Nós íamos de carro para agência, lá para as bandas de Acujit, uma área aparentemente mais valorizada da zona norte. Necessitávamos chegar antes do caminhão, desmontar aqueles armários não seria fácil, tampouco pegar o que havia sobrado, enquanto os demais nos observavam. Não sei ao certo se os olhares eram de felicidade ou medo, tente entender a cabeça das pessoas e provavelmente terminará amargo. De fato, não queria julgar, só queria pegar o que precisávamos e vazar dali.

Depois de uns 20 minutos após chegarmos na loja, o homem do frete nos encontrou, conversamos, demos as instruções e obviamente, executei o serviço que me haviam solicitado. Carregar aqueles móveis pesados, um a um, era uma prova para os meus novos músculos que haviam sido construídos na academia. Também era uma distração. Depois de um tempo, tudo estava feito, grande parte estava no caminhão e a outra levaríamos conosco no carro.

Minhas tias haviam estacionado o carro longe, porém, o fato de terem feito isso dentro de um mercado as induziu a comprarem lá. Enquanto isso, eu fiquei dentro da loja. Na real, estava me lembrando dos momentos que passei lá, dos clientes, dos perrengues, das gentilezas, da minha primeira venda, da vez em que viajei e conheci um monte de gente. Ah, me lembrei até das paulistas. Talvez não tivesse sido tão ruim receber tantos “nãos”, assistir aquilo tudo ruir era incomensuravelmente pior.

Depois de mais de 30 minutos elas chegaram, levamos o que havia sobrado para o carro, depois voltamos para fechar e conferir tudo da loja, até porque aquela era nossa última vez lá. Quando saímos, uma das minhas tias havia estado ao volante e sinalizado que iria sair, contudo, nossa justa preocupação havia irritado uma pessoa que desejava estacionar na vaga que cederíamos.

Quando enfim entrei no carro para sairmos, o homem do carro cinza entrou na frente do nosso carro, bloqueando a passagem. Estávamos literalmente presos, ele simplesmente desligou o motor e nos respondeu: “Aqui não tem babaca não, vocês vão esperar”. Basicamente, o cara percebeu que sairíamos e nos bloqueou. Teríamos que esperar ele fazer o que precisava e depois retornar.

Entretanto, eu não sou o tipo de pessoa que assiste este tipo de putaria calado, ainda mais de um coroa com 1.70, a qual a atitude insultava as minhas tias. Eu iria tirar aquele arrombado e seu carro dali nem que fosse capotando no soco. Nessa terra sem lei, não estava a fim de tolerar babaquice, ainda mais tão cedo. Eu me aproximei com minha máscara, simplesmente virei a cabeça, almejando usar a diplomacia da dissuasão, já que o sujeito estava visivelmente alterado.

Não funcionou, ele recuou como se fosse tirar o carro, mas não o fez. Eu havia pensado: “Esse cara está querendo levar muita porrada”. Um momento depois ouvi uma pessoa me chamar e dizer: “Ele perdeu o filho”. Eu me virei, e lá estava a esposa dele, com olhos que transbordavam dor. Ela completou dizendo que eles haviam perdido o filho há menos de duas semanas em um acidente de carro.

Naquele momento, toda minha raiva se dissipou e se transformou em dor. Eu respondi um seco: “Não, tudo bem. Eu não sabia”. Ela completou dizendo que nada justificava a atitude do marido, mas que, na verdade, eles nem deveriam ter saído de casa e me pediu desculpa. Involuntariamente, enquanto ele passava puto para fazer o que precisava ser feito, eu a fitei nos olhos e pedi desculpa.

Entrei no carro e falei que deveríamos esperar, porque havia algo mais grave. O fato daquele homem estar no seu carro cinza, remetia a lembrança da perda de seu filho. Não demorou cinco minutos, ele retornou, ainda esbravejando, e saiu com seu carro cinza. Eu não conseguia conjecturar levantar meus punhos para aquele homem, a dor que ele carregava dentro de si era gigantesca, ele já havia levado uma porrada dolorosa demais, e o caráter da esposa que ele tinha ao seu lado denunciasse que provavelmente ele não era um babaca. Eu estava envergonhado, meu instinto de defesa havia me conduzido a reagir com força perante uma ameaça, mas a situação era muito mais complexa, não era uma atitude babaca, era a atitude desproporcional de alguém machucado. De fato, nem tudo que fazemos por amor é amor, mas tudo que fazemos por ódio é ódio. Talvez, o segundo seja muito mais difundido, porque ele é acessível, palatável e nos fornece aparo moral para praticarmos atos excepcionais, que aos poucos se tornam banais até que este sentimento destrutivo consuma cada parte de nossa existência. Ao homem do carro cinza, espero que sua dor latente não consuma sua essência e nem te conduza à perdição, pois certamente seu filho não gostaria de ver seu querido pai definhar em uma profunda amargura.

A presente crônica foi baseada em fatos reais.

Autor: Matheus B. S. Brandão

Revisor: Wesley Alves

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Matheus B. S. Brandão

Master in International Relations. Amateur writer in his spare time. Enthusiast of philosophy, art and nature.