O vale das Cerejeiras (Capítulo II)

Matheus B. S. Brandão
10 min readAug 13, 2020

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Cheguei sozinho até a rodoviária, estava com sorte, não havia fila para fazer o check in. Em seguida me dirigi à zona de embarque, que também estava vazia, a razão era que naquele dia havia jogo do Brasil na Copa do Mundo. Bem, depois do incidente de 2014, eu não me animava mais com a seleção. Era uma viagem solitária, eu estava indo para um lugar que eu não conhecia, e tampouco sabia como lá chegar. Além disso, como estava desempregado, meu orçamento era restritivo.

Após algumas horas, chegamos na parte central de uma cidade. Bem, meu destino não era ali, na verdade. Eu ainda tinha um caminho longo a percorrer. Saltei na estação, todos empolgados assistindo ao jogo na televisão do posto de gasolina. Com minha mochila, um casaco leve e com a pinta de quem era de fora, perguntei a uma moça da parada:

— Com licença, você sabe qual ônibus passa em Raimul?

A moça me respondeu:

— Sim, é o X, ali tem um ponto onde ele para.

Eu gentilmente a agradeci. Experimentei abrir o Tinder enquanto esperava o ônibus, na esperança de encontrar uma companhia para a viagem. Todavia, a internet naquela região não era das melhores. Então apenas continuei a ouvir minhas músicas alternativas. O distrito de Raimul era longe, tive que esperar o ônibus por trinta minutos, tempo suficiente para o Brasil marcar um gol e ver seus torcedores felizes como crianças.

Entrei no ônibus, virei ao motorista e perguntei:

— Boa tarde, esse ônibus passa em Raimul?

Ele acenou positivamente. Em seguida, pedi que ele me avisasse quando eu deveria saltar. Gentilmente e com a leveza de um habitante de uma cidade pequena, ele disse que me ajudaria. Eu estava vivendo o inferno, enquanto partia em um passeio romântico para o hotel escolhido pela minha ex, ela se encontrava em um congresso em outro estado. Mais especificamente, enquanto eu tentava sobreviver em meio ao caos, ela já estava voando.

Com o decorrer do tempo, quanto mais subíamos, mais lindo ficava. O céu estava suavemente ensolarado; as folhas guardavam um verde florescente; a natureza parecia ainda reinar; as flores pareciam sorrir. Até que, uma garotinha loira de olhos verdes entra no ônibus, aparentando ter menos de 7 anos. Sozinha. Após isso, depois de algumas paradas outras crianças começam a entrar no veículo.

A maioria das crianças era de origem europeia, elas estavam felizes de se verem e estarem indo para a escola. É estranho para mim, criado em uma cidade grande e violenta, ver crianças indo sozinhas aos lugares. Naquele momento, percebi, que precisava me despir de minha armadura, a leveza daquele lugar me invadia. Ver o riso das crianças, ver a confiança dos pais, ver a gentileza e o cuidado do motorista era algo inexplicável.

Cheguei ao meu ponto, hora de saltar, agradeci e desci. Quando cheguei na cidade, eu pensei que precisava fazer um reconhecimento e depois achar um lugar para almoçar. Entrei em uma farmácia, comprei um remédio para dor de cabeça, saí, estava quase tudo fechado ainda devido ao jogo. Contudo, havia uma birosca de esquina aberta, caminhei, vi que lá havia somente uma refeição no cardápio: Arroz, feijão, salada, bife e batata frita.

Enquanto esperava, decidi abrir o Tinder novamente, mais por curiosidade, haja vista que a cidade possuía por volta de 5 mil habitantes. Comicamente, havia somente três mulheres e nenhuma me agradou. Na outra mesa, um grupo de jovens moradores da cidade fofocava sobre algum 6º indivíduo que deveria ser jovem como eles. Na minha cabeça, fiquei conjecturando as aventuras de viver nessa cidade. Imagine, você fica com uma pessoa e depois descobre que ela é sua prima. Aliás, a cidade deve ser formada por primos dos primos, até porque todo mundo tem olho verde e azul. O que é isso? A Finlândia?

Acabei meu almoço e fui conhecer o centro da cidade, que era composto por uma praça e um lago cheio de patos. Eu pensei: “De noite, isso deve ser bem bonito, preciso vir aqui”. Era um pouco claro para as pessoas que eu era um forasteiro, um do tipo pseudo-naturalista. Sem carro, eu me guiava pelas placas. Minha vida naquele momento se resumia a observar e tentar não morrer. Conforme fui seguindo, descobri um fato interessante sobre o hotel que havíamos escolhido. Ele ficava a 2 quilômetros da cidade.

Após 1200 metros, eu olhei no GPS, que apontava para uma subida. Ora porra, estava indo para Asgard? Conforme fui subindo, percebi que além da estrada ser de lama, ela também não possuía energia elétrica. Até que comecei a escutar barulhos de cães uivando, muitos deles, provavelmente anunciando minha chegada. Eu pensei: “Só falta eu ser atacado por um cachorro, ou como disse um amigo meu, pelo Diabo da Piroca”

Por sorte, os cachorros só uivaram, até que cheguei ao meu destino. A porta estava aberta, desci procurando alguém, não havia check in ou recepcionista. Na verdade, ao entrar você se deparava com uma cachoeira que passava por dentro do lugar, havia 5 mini chalés da esquerda para direita, e duas casas grandes. Até que fui recepcionado por uma moça muito bonita, na faixa dos 28 aos 33 anos. Ela estava limpando um dos chalés e foi me recepcionar, dizendo:

— Olá, tudo bem? Você é o hóspede chamado Matheus?

Eu confirmei e agradeci, e conversei um pouco com ela. O nome dela era Luciana Schneider, era arquiteta, havia se formado na UNB, morava no meu bairro favorito no Rio de Janeiro. Ela era uma mulher deveras educada, gentil, culta e de fato alternativa, sua simplicidade se encaixavam ao ambiente. A conversa durou um pouco menos de cinco minutos. Era perceptível que eu estava cansado da viagem, e meu olhar não escondia isso.

Em seguida, tomei um banho, me troquei, arrumei minhas coisas e me deitei um pouco. Era uma suíte, com cama, um móvel de madeira, abajur, espelho e um banheiro simples. Na parede acima da cama estava pintada uma cerejeira. Depois de descansar, iria à cidade para conhecer o lugar, mas sabia que precisava voltar antes do anoitecer, pois a estrada não havia luz, não tinha como voltar, eu era um adulto sozinho e a pé em uma cidade onde todos estão de carro e acompanhados.

Refiz a rota que havia tomado, fui até a cidade, comi um salgado. Um dos atendentes do bar comentou comigo sobre o resultado do Brasil e como ele havia jogado, falei de onde vinha, meus olhos castanhos e minha mochila me entregavam. Após isso, passei em uma loja, procurando uma lanterna, e quando vi que custava 15 reais me neguei a comprar, até porque só passaria um final de semana lá, não vi necessidade. Começou a anoitecer, pensei em voltar, até que a cidade na qual naquele momento faziam menos de 16ºC acendeu suas luzes na praça.

Aquela praça, toda iluminada, o lago belíssimo, aquele ar, leve e puro. Não, eu não queria voltar, queria conhecer a vida noturna de lá, nem que fosse para ficar num banco na praça sozinho. As estrelas, aquele era o céu mais bonito em todo o estado, constelações brilhavam e dançavam, mas aquilo seriam nuvens? Precisava retornar, comecei a caminhar. Em muitos pontos não havia luz alguma.

No meio do caminho, começou a cair uma forte chuva, daquelas que faziam ser impossível a caminhada. Procurei um abrigo e acabei tropeçando em um bar, esperei por 10 minutos e não parou. Bem, eu estava molhado, com frio e triste. Então, por que não gastar o pouco dinheiro que tenho com as cachaças regionais? Depois de quatro doses seguidas, não optei pela quinta, até porque eu precisava subir uma serra escura, em uma estrada de lama, com cachorros que poderiam morder meu rabo.

A chuva não parou e eu estava semi bêbado, pouco ligando para qualquer coisa, eu simplesmente decidi subir, burramente. Percebi que só enxergaria se usasse a lanterna do celular, e foi isso que fiz. Faziam 12ºC, estava tudo escuro, era difícil andar, a precipitação era agressiva, eu mal via o que estava a minha frente, parecia uma cena de Outlast 2. Depois desse pesadelo de pela primeira vez ver minha respiração condensar, cheguei perfeitamente “bem” ao hotel.

Não demorou muito e minha única comunicação com o mundo externo havia dado pane devido à chuva, isso mesmo, meu celular estava morto. Bom, troquei de roupa e coloquei aquela muda que estava usando para secar. Trinta minutos depois, uma pessoa bate a minha porta. Ao abrir vejo que era um homem, que também possuía entre 30 e 35 anos de idade, boa aparência e forte, de nome Lucas Schneider, era o namorado de Luciana. Como bom anfitrião, me cumprimentou e informou que a sala de estar estaria aberta para os visitantes.

Eu já estava levemente meio bêbado, todavia, já havia perdido tanta coisa, que ficar num quarto olhando a parede não me parecia uma boa ideia, era uma noite de sexta-feira, não queria dormir cedo e tampouco estudar. Bem, lá ao menos poderia tentar comprar uma pizza para voltar ao meu estado de espírito. Todavia, nem toda ideia que parece boa em um primeiro momento se confirma ser, um fato que insisto em esquecer.

Esperei uns minutos até eles se acomodarem e abrirem a sala de estar para ir até lá. Você consegue ouvir isso? É Jazz, refinado e bastante alternativo, acho que uma casa de madeira, em frente a uma cachoeira em uma noite estrelada, com essa música, seria uma das experiências mais magníficas que eu poderia viver. Eis que entrei na sala com meu jeito tímido, sem jeito, mas interessado. Vi que havia um cardápio, procurei desesperadamente algo para comer antes que eu tivesse uma azia e assim pedi uma pizza.

— Oi, Matheus, o que está achando de Raimul? — perguntou Lucas.

— Aqui é bem bonito e calmo. É bom sair um pouco da cidade.

A conversa estava interessante, nosso amigo era físico e profissional de Educação Física (irônico), tinha uma filha de 11 anos chamada Suzanna, a qual teve no primeiro casamento. Ex-surfista, o rapaz era um galã. Teísta, a visão filosófica dele se assemelhava ao naturalismo de Spinoza. Todavia, as impressões que pairavam no ar ao meu respeito já estavam no ar antes da primeira palavra.

Ora porra, ninguém vai a Raimul sozinho, e quando enviei a lista pela segunda vez, só havia um nome e não mais dois. Desse modo, já era claro que ele sabia sobre meu término. Quando a conversa chegou nesse ponto, Lucas puxou uma Cachaça Mineira. Eu não faria desfeita, aliás eu estava bebendo mais que o motor de um Opala.

Nossas conversas foram diversificadas, até que contei a história acima para ele e como havia parado lá. Depois de um tempo, por alguma razão Lucas havia feito mitose e havia triplicado, a pizza não chegava. Posteriormente, eu via todos fazerem esse curioso processo biológico. Pedi ajuda com o problema do celular, ele usou seu conhecimento em física, mas àquela altura, sentia que o celular já era, isso seria um problema para o futuro. Agora, me restava manter-me de pé.

— Então, me desculpa, eu esqueci de colocar a pizza para assar, me desculpa mesmo. Me informou Luciana.

— Não, tudo bem, já está bem tarde também e vocês voltaram cansados de viagem.

Gentilmente me deram uma garrafa de água e um sacão de amendoim pra levar para o quarto. Eu posteriormente os pagaria por aquele favor. Na manhã seguinte, a notícia não era das melhores, o celular tinha morrido de fato. Eu perguntei se havia como ligar para meus pais, para avisar que eu não havia sido atacado pelo Diabo da Piroca e sim por uma chuva. Depois de falar com meus pais, decidi que iria cruzar as cidades em busca de alguém que consertasse meu celular.

Por sorte, os Schneiders iriam passear pela Serra. Novamente, me ajudaram e me deram uma carona até Yrum, lá eles fariam compras e eu poderia seguir meu caminho até encontrar um técnico em celular. Durante o caminho, ele conversava com a cunhada, eu não me lembro o porquê, mas eu estava no banco do carona. Passávamos pelo caminho florido daquela serra. No meio daquele verde radiante vi uma flor incomum, sua cor rosada, se destacava perante aquele arco-íris florido, na primeira vez foi especial, mas quando vi que essas flores solitárias estavam em outros caminhos da estrada, percebi que não era o acaso, aquelas folhas caíam com tamanha vida que era possível até mesmo imaginar centenas de músicas. Eu estava em meu inferno particular, caminhando pelo céu.

— Elas são cerejeiras? — Eu perguntei a Lucas.

— Sim, os imigrantes japoneses plantaram algumas delas pelo caminho até Raimul, me respondeu Lucas.

Eu passava pelo vale das Cerejeiras, talvez ter quebrado o celular não tivesse sido tão negativo. Posso adiantar que depois de Yrum, rodei outra cidade, mas os técnicos cobravam 150 reais no mínimo. Comi um salgado no caminho. Lá pelas três horas da tarde, refiz sozinho o caminho de volta até Raimul, de ônibus. Eu me surpreendi porque sem absolutamente nada consegui me guiar.

Durante estes caminhos, por sorte encontrei pessoas que me ajudaram a ir cruzando as cidades, até mesmo uma paulista, estudante de odontologia, que me levou pessoalmente a uma loja técnica. Após passar pelo vale, a cada cidade que cruzava, as pétalas das Cerejeiras guiavam meu caminho. A minha dor às vezes se abstinha perante minha aventura simples e errante.

Quando cheguei ao hotel, comi os biscoitos que tinha, tomei um banho e fui descansar. O tempo neste lugar parece estar parado, eu só tinha minha companhia e o profundo silêncio, só havia o barulho da cachoeira, sem música, sem voz, não havia nada e nem ninguém. Eu era o escravo e o rei do silêncio, uma sensação que eu jamais vivi em minha vida, não havia conforto, afeto, sermão, dor, só existia a minha consciência, que naquele ecumênico momento estava em paz.

O presente romance foi baseado em fatos reais.

Todos os personagens e lugares tiveram seus nomes alterados.

Autor: Matheus B. S. Brandão

Revisor Ortográfico: Wesley Alves

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Matheus B. S. Brandão

Master in International Relations. Amateur writer in his spare time. Enthusiast of philosophy, art and nature.