O último patriarca — Primeira Parte

Matheus B. S. Brandão
10 min readJan 21, 2021

— Eu entendi, mas quando foi a primeira vez que você o viu?

A mulher questionada responde:

— Quando era criança. Ele ficava em pé no terreno. Não importava se eu piscasse ou mudasse a direção do meu olhar. Ele continuava a me encarar, não se intimidava de nenhuma forma.

Naquele momento, o homem surpreso percebera que existia um padrão, não no contorno, mas talvez na forma, algo que lhe trazia dúvidas, também poderia ser a resposta para suas perguntas. Desse modo, ele continuou a perguntá-la:

— Então, ele é diferente de todos os outros daquele lugar?

— Como assim?

Em dúvida, a mulher tentava compreender qual era a finalidade daquela série de perguntas, principalmente da última. Assim, a resposta para seus questionamentos vinha seguida por uma viagem ao passado, na verdade, uma jornada por muitas versões de uma mesma história.

— Ele não desaparecia. Normalmente, os outros que vimos desapareciam quando piscávamos. Pareciam miragens.

Talvez, naquele momento aquela inesperada resposta trouxesse uma reflexão. Porque aquele fantasma não sumia, tampouco retrocedera, ele não possuía tamanha distinção, na verdade era categórico em reafirmar que aquele espaço os pertencia. Em suma, todas as noites eles habitavam o terreno, por vezes, mais invasivos e algumas vezes mais camuflados. Era indubitável que após dezenas de pessoas terem alegado ver sombras, caveiras e até seres andando sobre aquele terreno, havia algo estranho, algo que foi engolido no esquecimento do tempo.

Não importava a religião ou a crença daqueles que passavam a noite ou mesmo dos que se viravam para aquele terreno, sempre viam algo inumano. Contudo, cada pessoa via algo diferente, e de maneiras distintas as criaturas se apresentavam para cada um. O que antes eram vultos horripilantes em formas de pessoas, no decorrer do tempo se transmutava numa adequação de morte, sons estranhos e até gritos de pessoas conhecidas que sempre eram ecoados no terreno. Havia algo lá, algo lá dentro que chamava, na escuridão das folhas e das árvores.

Aquele terreno, onde tudo com o decorrer do tempo morria, onde as coisas paravam de dar frutos, onde filhotes de animais morriam às dezenas em questão de dias. De fato, havia em uma parte daquele terreno, rodeada pelas árvores e pelas plantas, uma atmosfera de morte. Algo ou alguém estava preso àquele lugar, não era possível que não existisse uma possessividade em relação àquele espaço.

Em algum mês, em algum dia, em 1978.

Uma menina, como qualquer menina, na sua ânsia de brincar, carinhosamente convidava sua irmã, mas sem a formalidade tipicamente adulta, designando-se a dizer um simples:

— Eu vou brincar lá fora.

Sua irmã mais velha, receosa, não achava uma boa ideia. A hora não lhe era a melhor, assim se limitando a responder em um pleonasmo enfático:

— Tá tarde, eu não vou não.

Surpresa, mas também aborrecida, a irmã mais nova questiona aquela que por sua idade deveria ser a mais corajosa:

— É aqui embaixo, deixa de ser medrosa.

A resposta imutável, em um tom mais alto, resplandecia a segunda negação, tão simples e firme como fora a primeira.

— Ah, não quero.

Convencida, não havia outra escolha para a menina a não ser descer as escadas e brincar sozinha, havendo em sua resposta um misto de decepção e aceitação, sua entonação resumia-se em um simples:

— Então tá.

A doce menina que com seus curtos pés calmamente descia a escada, ficaria próxima ao terreno que seu pai acabara de adquirir. Esta menina possuía 8 irmãos, uma mãe que sofria de esquizofrenia e um pai que estava sempre ocupado no trabalho. Na época dos anos de chumbo, não era incomum que homens passassem mais de 12 horas trabalhando, ainda mais se a vontade do general assim fosse. De fato, sustentar 9 filhos e uma mulher que não se encontrava na plenitude de suas faculdades mentais denotava subserviência a um sistema que oprimira este homem desde sua infância.

Em suma, as crianças que agora cresciam sem um pai e sem uma mãe, eram antecedidas por um homem que passara sua infância construindo vigas de ferros e sendo revistado todas as noites pela polícia militar do Rio de Janeiro. Anos se passaram, mas aquele homem novamente era assombrado pela ditadura, todas as vezes que saía de casa não havia a promessa de retorno, nem tampouco um erro significaria a possibilidade de acerto futuro.

Os passos que a menina seguia em sua caminhada eram leves em uma escada construída na subserviência da amargura, em um terreno obtido com o dinheiro do silêncio e da dor. A menina anda, para e olha. Diante dela, uma figura. Esse homem está parado, seu corpo mediano, com botas, cuja calça e a camisa não podem ser vistas. Ele usa um chapéu aparentemente feito de palha. Está parado e olhando, olha e não faz nada, observa atentamente a criança, seu rosto é coberto por uma atmosfera densa e escura, todo seu corpo é escuridão. Ele sabe quem ela é, mas ela não o conhece. A boca da menina está meio aberta, como de quem está aterrorizado, mas ao mesmo tempo busca um fôlego no ar, ainda que a respiração esteja rarefeita, e que talvez os olhos não consigam mais discernir se aquilo era uma projeção infantil ou se era real. Depois daquele dia, aquela menina saberia de sua existência, daquele ser que era inominável, entre todos eles, o mais intrépido e também o mais dedicado.

Em algum mês, em algum dia, em 1992.

A criança, que antes era menina, hoje é mulher. Ela habita em outro endereço, mora em um apartamento com seu marido. Em uma vida normal e pacata, a doce criança que percorria a carreira de estudante de direito possui uma rotina muito agitada, dividindo-se entre o estudo e o trabalho, tal qual seu pai fazia. A menina que via o fantasma do chapéu de palha na infância hoje caminha pelas suas próprias pernas, em um estágio bem remunerado, que fora obtido por pertencer à faculdade mais renomada de seu país.

Essa moça, depois de um longo dia de trabalho e de faculdade pela noite, chega em casa. Religiosamente, ela retira sua sandália, deixando seus pés relaxarem, remove com cuidado os brincos de sua orelha, caminha até o banheiro, se despe e toma um banho. A recompensa de um dia de trabalho é uma simples ducha quente, ela se enxuga mecanicamente, já saturada do dia anterior, ela veste algo mais confortável e enfim se prepara para dormir. Seus olhos se fecham, ela começa a sonhar, entretanto, evocar seu inconsciente é algo que ela não deseja fazer, ainda mais quando isso se resplandece em um envolvente e sombrio pesadelo. Talvez por prática ou por sorte, aos poucos ela consegue responder àquele maléfico estímulo cerebral, após se livrar daquele transtorno e conseguir abrir seus olhos, este movimento feito como um relapso representava o alívio e o esforço de sua fuga.

Ela naturalmente volta seus olhos para cima, e lá está, na borda direita da cama. Aquilo a olha diretamente, ela pisca na intenção de fugir do possível segundo pesadelo, entretanto, o ser cujas chamas negras compunham sua forma não tinha qualquer intenção de se retirar. Nesse momento, ele a fita, observando-a, ela está inconformada, mas ao mesmo tempo não pensa em gritar ou em acordar seu marido que está ao lado esquerdo da cama. Ela não acredita no que está vendo. Em um ato de simples desespero, fecha os olhos, aguarda alguns segundos e torna a abri-los, todavia, aquele ser se nega a sair. Ela ora a uma imagem pertencente a um ser divino, fecha novamente os olhos, evitando confrontar aquilo, em seu desespero silencioso, sua mente novamente trabalha na esperança de que aquela assombração fuja, que ela escape desse segundo pesadelo, no qual a fantasia parece se misturar com a realidade. Ao enfim abrir os olhos, aquilo não está mais lá.

O homem do chapéu de palha, diferentemente dos outros, não parecia estar preso ao terreno. Aparentemente, ele só aparecia para uma única pessoa. Naquele mesmo ano, o apartamento onde aquela jovem morava foi arrombado, furtado, e como se não bastasse, o assaltante até mesmo fizera um café para seu deleite, aquilo era uma afronta ou uma armadilha? De fato, era uma estranha coincidência. Assim, era evidente a impossibilidade de morar em um lugar que não havia qualquer segurança. Ao mesmo tempo, a ideia de retornar à casa no terreno também era inconcebível. Todavia, mais cedo ou mais tarde, muitos dos que de lá saíam eventualmente retornavam para ali morar. Onde essas assombrações fossem, elas carregavam morte, dor, medo e desesperança, tais quais buracos negros, suas perturbações rotineiras sugavam a paz de todos que habitassem os lugares visitados.

Em algum dia, em algum mês no ano de 2006.

— Todas as noites os cachorros latem, todas as noites eu vejo sombras passeando pelas salas, mas por alguma razão, elas não entram nos nossos quartos.

Assim havia falado o filho aterrorizado para sua mãe. A mãe, resplandecendo a típica calma dos mais velhos, responde em um tom tranquilo um belíssimo clichê:

— Quando você vir essas coisas e só orar que elas vão embora.

A mãe assim havia tranquilizado seu filho. A pergunta era se ela mesma acreditava no conselho que havia professado. Em suma, clichês são belas ferramentas para a coesão social, entretanto, quando se reflete sobre elas, soam tão ilógicas como uma mentira infantil, ao passo que quando são ditas por uma pessoa mais velha, elas parecem verdades apaziguadoras.

Talvez, o que difere as crianças dos adultos é que elas não se saciam com respostas incompletas. Coisas estranhas já haviam acontecido e não seria uma reza, a qual poderia evitar, ver e ouvir o inevitável. Aquela explicação não era suficiente, elas não diziam por que as paredes pareciam respirar. De fato, a infiltração causava esse efeito na casa inferior, mas o barulho do oxigênio lembrava o de um pulmão, mesmo que vedassem o cômodo, o ar parecia entrar e sair com uma pressão incomum.

Em suma, a família que agora habitava a casa inferior não se moveu para lá devido ao assalto em 1992. Não existem epifenômenos. Em suma, eles passaram por dois outros locais, a primeira a casa da mãe do cônjuge da antiga criança e posteriormente, com muito esforço tiveram êxito em ter a casa própria. Suas vidas estava bem, e o homem do Chapéu de Palha não havia sido visto novamente.

Os anos se passaram, e aquela família composta por um casal e uma criança ia à igreja, tinha um cachorro, possuía um carro, um retrato de uma típica família brasileira. Entretanto, quando eles decidiram adquirir seu lar, eles não objetivavam habitar para sempre em uma casa pequena. Então adquiriram uma na qual fosse possível construir mais dois andares. Cada nota ganhada era economizada, cada níquel se denotava através de intenso sacrifício e esforço, aos poucos o material chegava, o pedreiro entrava, trabalhava, saía, e assim era sucessivamente.

A casa que antes era minúscula, agora começava a receber a adição de um espaço nas alas superiores, o sonho em ter o próprio quarto, uma sala não conjugada, aquela obra aos poucos ganhava forma. Todavia, em uma noite como outra qualquer, o homem, o pai, que sempre voltava de madrugada após um dia de trabalho, antes de chegar a casa, reduz suas passadas para contemplar aquilo que também era o fruto do seu esforço.

Até que… Ele afina seus olhos, para confirmar o que enxergava. Uma gota de suor desce em sua testa, uma gota fria, seus lábios ficam secos, sua respiração fica mais rápida, mais carregada. Ele vê um vulto na janela direita no 2º andar, o qual parecia ter um formato humano. Ele desce as escadas para a casa de baixo, avisa sua esposa e, munido do seu papel de homem da casa, pensa em subir para o 2º andar a fim de procurar aquilo que havia visto. Entretanto, aquela estrutura era desprovida de eletricidade, logo, sua esposa, de maneira tempestiva, o convence que ir sozinho, sem qualquer iluminação poderia ser um ato mortal.

Assim, ele cai em si. Subir ali seria suicídio, pois se houvesse alguém, as chances de uma luta corporal terminar em assassinato eram altas. O casal, como sempre sozinho, decide cercar a casa e se pôr a observar se o vulto poderia aparecer. Enquanto isso, na casa de baixo, seu filho dorme um sono profundo, nem imaginando o risco que seus pais corriam na calçada da rua, à espera de um sinal do que havia sido visto.

Eles pensam e analisam, eram recém chegados naquele lugar. Se de fato alguém tivesse invadido, certamente era daquela rua, alguém que os observava, que verificava seus costumes frequentemente. Não havia nada de valor na casa de cima, talvez a escolha mais inteligente fosse deixá-lo escapar, tal qual se opta por deixar um rato fugir por um bueiro. Em suma, se aquele homem fosse um morador, prendê-lo significaria uma guerra eterna contra seus parentes e amigos. A próxima invasão talvez não fosse um simples furto, mas quem sabe um crime passional.

O casal adentra a casa, a residência inferior inviabilizava a descida de qualquer pessoa, então estavam tranquilos. No dia seguinte, eles poderiam verificar se algo de fato ocorreu. Poucas horas se passam, e a madrugada das dúvidas é recebida pelas respostas do amanhã. Cansados, eles dormem.

O pedreiro, que possui a chave da casa de cima, normalmente a acessa. Rotineiramente, antes de trabalhar ele reúne seus materiais, todavia, nessa manhã, ao chegar no terraço, sua pele assume uma palidez e o suor começa a descer de seu rosto como uma cachoeira. Ele havia percebido que algo havia sumido, pondo-se a procurar aquilo que sempre encontrava no mesmo lugar, e em sua busca, a resposta que encontra o deixa em choque.

Ao chegar em um dos quartos no 2º andar, uma camiseta que secava na corda estava no chão, e em cima dela, uma merda, uma grande, a qual fora produzida durante o desespero do ladrão. Em suma, aquilo era a confirmação que o vulto não era de um espírito, era demasiado humano, assim como um rato aterrorizado em um bueiro, a esperança que após seu esforçado sucesso, ele não se proporia a retornar.

Não demorou muito para que o conjunto de vários acasos fizessem o casal morar em uma casa inferior, mas não a sua, uma que havia sido construída no terreno, aquele onde a doce criança fora criada. As inúmeras coincidências, de vultos que se transmutavam em pessoas ou o contrário, as inúmeras feridas que o tempo fazia, iam amargando a doçura que restava da antiga menina, que agora já se encontrava com quarenta anos. Mesmo casando e indo viver sua vida, o conjunto de casualidades a empurrava para um rodízio, onde não só ela, mas todos os irmãos mais cedo ou mais tarde acabavam indo morar na casa do terreno.

O presente conto é baseado em fatos reais.

Autor: Matheus B. S. Brandão

Revisor: Wesley Alves

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Matheus B. S. Brandão

Master in International Relations. Amateur writer in his spare time. Enthusiast of philosophy, art and nature.