O último patriarca — Parte final

Matheus B. S. Brandão
10 min readJan 24, 2021

Em algum dia, em algum mês na década de 1960.

— Eu comprei este terreno, está aqui a escritura.

Disse o homem misterioso, que batera a porta.

— Estranho, pois segundo a prefeitura este imóvel não possui dono, e ninguém poderia comprá-lo.

Assim respondeu surpreso e indignado o homem que morava ao lado do terreno.

— Não está vendo? Eu tenho direito por tudo isso.

— Eu irei averiguar isto na prefeitura, caso esteja certo, você poderá ter esse terreno.

De maneira ríspida, mas educada, aquela resposta significava uma fuga estratégica para compreender aquilo que ele sabia que era impossível de possuir.

Extremamente encabulado, o homem que morava na casa ao lado com seus 9 filhos e sua esposa entrou em sua residência e refletiu. Decidido, pôs-se a ir na subprefeitura do seu bairro, viu que a escritura não existia e que ninguém havia comprado aquele terreno. Então, ele o comprou para que ninguém mais tentasse enganá-lo ou viesse a causar problemas. Desse dia em diante, ele começou a usufruir do terreno onde seus filhos sempre brincavam.

Conforme o tempo passava, a casa ganhava forma, ela era suficientemente espaçosa para todos, entretanto, se a paz reinava dentro, fora do terreno coisas estranhas aconteciam. Quando o jovem pai percebeu que parte dos acontecimentos estranhos decorriam da costumeira invasão daquele terreno, fossem para executar rituais ou para plantarem plantas psicotrópicas, em face àquela ameaça que lhe perturbava, ele ergueu um muro, um alto o suficiente para não escalarem o largo o suficiente para que não o destruíssem.

Em fato, os vultos continuavam a serem vistos. Confuso, aquele homem não conseguia compreender como os outros como ainda viam coisas, e não concebia como ele mesmo via aqueles seres caminharem no terreno de maneira tão livre e sutil, visto que não eram mais humanos que andavam por ali. Então, em sua racionalidade, ele percebeu que era interessante colocar um guarda, um que fosse seguro, barato, prático e obediente. Ele comprou um cachorro. O tempo passa, ele caminha e o mistério não dilui, suas filhas veem coisas, as pessoas chamam o terreno de mal assombrado, coisas estranhas acontecem, quase tudo que se planta, posteriormente morre. Se o terreno tivesse sido invadido, o cachorro latiria, mas não era o caso, quem andava por lá também morava naquele lugar.

O sábio homem respira, pensa, senta-se e começa a ler. Ele estuda, lê mais e mais, mas onde está a resposta? Logo decide investigar o passado da casa, e descobre sobre aqueles que ali habitaram e sobre o terreno. Nesse momento ele compreende, não havia nada que pudesse ser feito. Esse mistério tinha uma origem, ao menos uma agora era conhecida. As sombras conviverão com os humanos, esse era o destino, na sua presunção de edificar uma condição melhor de vida, ele esbarrou no passado daqueles que ali decaíram, não eram só mundo distintos, mas realidades opostas.

Quando aquele casal, junto com seu filho decidiu ir morar naquela casa, havia uma atmosfera estranha, não só pela mudança, mas havia algo, que dizia que eles não pertenciam àquele lugar. Se durante o dia os pássaros cantavam, as plantas se abriam e tudo que ali existia acordava. A noite carregava uma melancolia, um frio, uma introspecção, uma estranha tensão, na qual, os cais sempre latiam em uma hora específica, como se fosse um alarme.

A cada noite, quando se observava os cantos do terreno, por vezes, era possível ver algo como se fossem miragens e após piscar os olhos, elas desapareciam. Aos poucos aqueles seres que circundavam foram se tornando mais invasivos, de forma que, não mais satisfeitos, começaram a emitir sons e até entrar na casa inferior. Eles passavam pela sala lentamente como se flutuassem, eram seres sem forma, mas presos a algo, como se vagassem eternamente pelas mesmas áreas.

Talvez, isso fosse apenas imaginação ou mesmo criações alegóricas. Até que em uma noite comum, o sábio homem, que já era velho, esqueceu-se de fazer algo importante. Todas as tardes, exatamente às 16h, ele descia com um balde de ração para cachorro, a medida era impreterivelmente ¾, ele alimentava dois rottweilers, um chamado “Duque” e a outra “Princesa”. Sempre metódico e disciplinado, sempre seguia esse roteiro.

Então, em face àquele desvio, seu neto se prontifica a dar a ração dos cachorros. O terreno está escuro, com poucas luzes o iluminando, e por vezes apenas o espectro da lua o guia em sua caminhada até a casa dos cachorros. Eles não estão longe, mas a sensação de andar parece ser maior. O garoto chega, coloca a ração do Duque e depois da Princesa, exatamente como descrito, 2 colheradas grandes para cada. Neste movimento, ele sente algo frio, o escuro parece ser opaco, existe algo que transborda a normalidade. Ele sai, anda até sua casa e entra.

No dia seguinte, o sábio velho o questiona: “Você estava acompanhado de alguém?” O menino responde que “Não, e pergunta o porquê?” Ele calmamente responde: “Quando você estava dando comida aos cachorros, eu vi alguém do seu lado, mas quando você saiu, essa pessoa continuou ali e apenas se voltou a observar para sua casa, foi aí que estranhei”. Naquele momento a criança meio assustada e também curiosa questionou se seu avô acreditara no que testemunhava, o sábio homem apenas respondeu: “Por vezes enxergamos coisas que não existem, vemos, mas aquilo não está ali.”

Era estranho, que após tantos testemunhos de pessoas de todas as crenças aquela pessoa mantivesse tamanha teimosia. A criança escutou, e logo se prestou a mudar de assunto, entretanto, havia uma opacidade naquela explicação, aquelas palavras lhe eram estranhas, em suma, devaneios não são nítidos, a figura escura, com olhos, era humana, ou ao menos tinha o formato de um. Havia várias perguntas, mas a criança se questionou, primeiramente por que aquilo não a atacou e porque aquilo se colocou ao lado de fora, sem entrar na sua casa? Aquele ser era maligno? Ou apenas uma entidade que se prestava a observar a vida dos vivos? Os mistérios se acumulavam.

Ademais, todas as vezes em que os cachorros tinham filhotes, fossem 7 ou 9, quase todos morriam ainda nos 2 primeiros dias, não importasse o cuidado dado, as vidas se esvaíam instantaneamente. Aquela região, aquele lugar, atrás da casa dos cachorros, onde as figuras às vezes apareciam, onde tudo que era plantado morria, somente o extenso capim cobria a região. Talvez, a resposta fosse aquele ou aqueles seres carregavam o mal, a morte e a dor, como tivessem se apossado daquele lugar ou presos, perpetuamente a observar o movimento dos vivos.

Conforme as coisas se intensificavam, quase todos na casa se reuniam parar orar ou rezar, a fim de domar aquilo. Até que em uma noite, quando todos estavam de mãos dadas na casa inferior, se escutou um estalo na janela, como se fosse uma batida, uma interrupção, naquele momento, aquelas pessoas deveriam ignorar ou se prestar a investigar o que era? Por que os cachorros não latiram? Estavam todos absortos em uma histeria coletiva, envoltos num mito, ou algo sobrenatural existia?

Em uma terça-feira daquela mesma semana, a criança e seu pai foram até a igreja como uma boa família cristã, viviam em suas realidades vedadas e talvez a sensação da especialidade os causasse uma boa percepção sobre si mesmos. A menina, que agora tinha quarenta anos, que se criara naquele terreno, exatamente às 20h da noite, ouve alguém chamar seu nome, a voz era familiar. Era estranho, porque sua família chegaria em casa por volta das 21h. Enfim ela sai e anda por mais ou menos 100 metros por parte do terreno, abre a porta e nada vê, não há ninguém. Ela olha para a esquerda, depois para a direita, inconformada e confusa, ela está esquizofrênica e logo se questiona, pois jurava ter ouvido alguém gritar seu nome duas vezes, e a voz era de seu marido.

Talvez, o mais estranho fosse ter sido a primeira, mas não a última, nas demais vezes, ela se pôs a ignorar. Sempre durante a noite, sempre naquele terreno, sempre quando estava sozinha, as coincidências eram estranhas. Em face daquilo, a criança, já cansada de ver coisas, de escutar relatos e até mesmo ouvir sons incomuns, foi buscar a informação, a explicação. Não havia mais medo, se acostumara com as recorrentes assombrações, que sempre vagavam pelas mesmas áreas, nos mesmos horários.

Ele anda pelo terreno, sobe as escadas e pede autorização para entrar no quarto do seu avô. Ele é franco e direto, perguntando:

— Por que todos veem coisas neste terreno?

O homem o olha, seu neto já era crescido, ele ajeita os óculos, fecha e abre os olhos em um movimento longo, tornando a virar em sua direção, seu corpo assume a forma de um contador de histórias, iniciando-a assim:

— Há muitos anos, esse terreno não era murado, as pessoas faziam sacrifícios, despachos e até plantavam coisas aqui, entretanto, antes disso…

Ele faz uma pausa, respira e continua:

— Uma família morou na casa onde sua tia mora.

A criança o interrompe e pergunta:

— A primeira casa em que vocês moraram antes de comprar o terreno?.

Ele responde:

— Exato.

O velho continua sua história:

— Existia uma família que morava aqui, um homem com esposa e filhos. Ele estava com sérios problemas financeiros, não conseguia arrumar emprego, o dinheiro já era escasso. Após tentar várias vezes se salvar da desgraça que era ver sua família sucumbir aos poucos, ele não suportou a vergonha, como bem sabe, um homem antigamente, não poderia deixar sua família nesse estado. Em desespero e desonra, ele fugiu daquele problema, amarrando uma corda em seu pescoço, ele saltou de uma das árvores desse terreno.

Naquele momento, a criança percebeu que… Uma pessoa havia se suicidado sob uma tremenda e lastimável dor. O sábio homem continuou:

— Seu cadáver ficou exposto para todos, causando mais dor para sua família.

A criança pergunta:

— E a família, o que aconteceu com eles?

Ele responde:

— Eu não sei. Ao menos, uma pessoa já morreu aqui, fora o que possa haver sido enterrado.

A criança se lembrava que quando cavavam para limpar o terreno, não era estranho encontrar lajotas portuguesas e pedaços de pratos de barro, aquelas terras foram historicamente amaldiçoadas, e a pergunta seria como remover a maldição ou contê-la. Em suma, as orações continham e diminuíam, mas era necessário que os objetos acumulados fossem jogados fora, era necessário renovar aquelas terras com vida, a maldição estava presa à memória.

Anos se passaram, e o sábio homem caiu do 2º andar da escada, não se sabe ao certo a razão do seu escorregão, mas sua idade avançada já deveria causar certa vertigem, sua queda fora tão violenta que causou uma fratura exposta na perna esquerda, gerando uma poça de sangue gigante nos degraus da escada. Mesmo tendo sobrevivido, aquele homem viu sua vida ser encurtada pela incapacidade em andar. Não somente a fratura exposta, mas também a prótese vencida que fora inserida em sua perna durante a operação, o que o impedia de caminhar. Durante um ano ele tentou se levantar e não conseguiu, sua autoestima, sua ferocidade e sua força se esvaíam, um ser de tamanha capacidade, mas que durante toda sua vida o seu maior fantasma era a corrupção humana.

Não conseguiram tirar seu emprego, mas tiraram sua esposa, não conseguiram retirar sua força, mas tiraram suas pernas, não retiraram sua casa, mas tiraram sua sanidade. Ele olhava pela janela e via o céu, de tanto estar preso naquela cama, seus sonhos pareciam ficar mais distantes, suas asas eram tão grandes quanto a coleção de livros que guardava, contudo, suas vulnerabilidades eram expostas, tal qual os ossos de sua perna que não cicatrizavam.

Quando enfim pôde andar, já não sentia o vigor de antes, não sentia mais a mesma alegria em sentir o Sol pela manhã, não tinha mais o cuidado em passar perfeitamente a manteiga no pão, em molhar suas plantas, em plantar suas flores, em sentir o vento sobre sua pele, os cachorros já não precisavam dos seus cuidados diários. Ele não sentia mais ânimo em comer, sua saúde foi esvaindo. Até que enfim.um invasor tomou seu corpo e o levou para o inferno, o nome pela qual chamava o hospital. Ele resistia, pois sabia que era o mais velho de uma geração, o último patriarca, ele lutava.

Todos os dias, o intenso bip, bip, bip, a correria das enfermeiras, os gemidos de dor o foram cansando, mais e mais. Quando executaram a traqueostomia, o sábio homem percebeu que seria difícil passar o resto de sua sabedoria aos demais, sua voz potente decaía em cansativos sussurros. Sua pressão vivia baixa, dando apenas alguns picos quando recebia visita. Mesmo em coma conseguia se comunicar através de suas mãos. Assim, através de mãos dadas, seu neto que agora já era um homem, se comunicava. Um aperto era não, dois eram sim, mas como era teimoso, quando queria dizer sim, fazia muitos apertos.

O velho aos poucos dava os sinais de que não gostaria de viver sem sua voz, sem suas pernas de antigamente, de fato, ele falecia pelo cansaço, mas tinha a oportunidade que poucos têm na vida, a oportunidade de escolher quando morrer. Até que em uma quarta feira no ano de 2016, ele se despediu. No decorrer do tempo, as assombrações foram se esvaindo, quando o velho começou a se libertar do passado, aqueles seres foram sendo extintos.

Não havia mais dor, agora, aquele que usou o terreno havia falecido junto a sua família, em modo honroso. Havia escolhido encerrar sua jornada sem quaisquer pendências com este mundo, ele se foi com a aparência serena. O vácuo que deixou não emanava dor e lamúria, na verdade, fornecia luz e esperança.

Anos se passaram até que todos aceitassem aquela despedida, quando enfim todos os sobreviventes dos anos de chumbo compreenderam que era o momento de se despir das agruras do passado. Quando o mato que crescera durante a ausência do seu cuidador foi cortado, quando novas flores foram plantadas, quando limpezas foram feitas e o muro foi revitalizado, quando lugares foram arrumados.

As árvores começavam a dar frutos, as noites não causavam mais medo, os pássaros cantavam mais alto pelo amanhecer. A terra não estava mais ácida, o terreno, após anos de esforço, agora refletia plenamente os cuidados do seu cuidador pioneiro, a terra resplandecia vida.

Aqueles que conheceram o sábio homem, ao visitar o terreno, dizem sentir como se parte dele ainda estivesse lá. Após sua morte, de fato, algo estranho ocorreu. Diz a lenda que alguns ainda conseguiram se comunicar com ele após partir, como se ele quisesse dar seu último adeus, em pé e não deitado na cama de um hospital. Em suma, jamais saberemos se aquele homem ainda visita sua casa, entretanto, existem aqueles que acreditam que a essência do último patriarca continua a habitar aquelas terras.

O presente Conto foi baseado em fatos reais.

Autor: Matheus B. S. Brandão

Revisor: Wesley Alves

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Matheus B. S. Brandão

Master in International Relations. Amateur writer in his spare time. Enthusiast of philosophy, art and nature.